
Esta é uma das épocas do ano em que contamos os nossos dias. Lá se foram outros 365, como que voando. E o que fizemos com eles? Será que os aproveitamos bem? De tudo o que passamos e vivemos, o que ficará? Algo será lembrado?
Agora que temos um ano novinho em folha pela frente, como usá-lo? De que forma devo gastar os meus dias? Em que investirei recursos e energias? Como devo viver hoje para não ter arrependimentos amanhã?
A oração de Moisés no Salmo 90 talvez possa nos dirigir nessa reflexão. E é significativo que a primeira coisa que Moisés faz é considerar a pessoa de Deus:
“Senhor, tu tens sido nosso refúgio de geração em geração. Antes que os montes nascessem, ou que tivesses formado a terra e o mundo, sim, de eternidade a eternidade, tu és Deus” (Sl 90.1,2).
Parece que Moisés estava com seu pergaminho aberto em Gênesis 1, refletindo que, antes mesmo do “princípio”, antes de criar os céus e a terra, o Eu Sou já estava lá. Ele sempre existiu e sempre existirá, de eternidade a eternidade.
Por ser o Deus Eterno, ele é refúgio de seu povo de geração em geração. Há aqui um contraste entre Deus e o homem. Deus permanece por toda a eternidade passada e futura, mas as gerações de seres humanos passam. Enquanto uma nasce e cresce, outra está envelhecendo e morrendo. Muitas já se foram sem que se tenha lembrança delas; outras gerações virão, e nada saberemos a seu respeito. Mas Deus é o mesmo e é refúgio para homens e mulheres de todos os tempos.
De fato, a brevidade da vida humana – em contraposição à eternidade de Deus – capta a atenção de Moisés nos versículos seguintes:
“Tu fazes o homem voltar ao pó e dizes: Voltai, filhos dos homens! Porque, aos teus olhos, mil anos são como o dia de ontem que passou, como a vigília da noite. Tu os arrastas por uma correnteza; eles são como o sono, como a relva que floresce ao amanhecer, que brota e floresce de manhã, mas à tarde murcha e seca” (Sl 90.3-6).
Parece-me que Moisés deslizou seu dedo indicador pelas palavras iniciais de Gênesis até chegar em 3.19, a sentença de Deus para Adão após a Queda: “Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste tirado; porque és pó, e ao pó tornarás”. A morte do homem é a consequência inevitável do pecado, como Deus havia advertido claramente a Adão (Gn 2.17).
Além de pó, os homens são comparados ao sono e à relva. São boas imagens para a transitoriedade. O sono é breve, facilmente se acaba; não é preciso muito para interrompê-lo. Quanto à relva, “brota e floresce de manhã, mas à tarde murcha e seca” (v. 6). Tal é a vida do homem. Passa tão rápido quanto algo arrastado pela correnteza.
Para Deus, em contraste, mil anos são como o dia de ontem. Como a noite passada. Deus está fora e acima do tempo, pois foi ele mesmo que o criou.
No trecho seguinte, Moisés medita sobre a ira e o furor de Deus – assuntos sobre os quais talvez não gostemos de falar. Mas repare como ele repete essas palavras várias vezes:
“Pois somos consumidos pela tua ira e afligidos pelo teu furor. Colocaste diante de ti nossas maldades, e, à luz do teu rosto, nossos pecados ocultos. Pois todos os nossos dias passam sob tua ira; nossos anos acabam-se como um suspiro. Os anos da nossa vida chegam a setenta, ou, para os que têm mais vigor, a oitenta; mas o melhor deles é cansaço e enfado; pois tudo passa rapidamente, e nós voamos. Quem conhece o poder da tua ira? E o teu furor conforme o temor que te é devido?” (Sl 90.7-11).
O motivo da ira de Deus é claramente explicado no versículo 8: “nossas maldades” e “nossos pecados ocultos”. São eles que fazem separação entre nós e o nosso Deus (Is 59.2). Ofendem o caráter perfeitamente santo de Deus e despertam sua justa ira.
Ah, certamente Moisés presenciou a manifestação da ira de Deus em resposta ao pecado do povo. Episódios como o do bezerro de ouro (Êx 32.10,11), a morte de Nadabe e Abiú (Lv 10.1,2), o fogo do Senhor que puniu os murmuradores (Nm 11.1), a lepra de Miriã (Nm 12.9,10), a rebelião de Coré, Datã e Abirão (Nm 16.30-35) e as serpentes venenosas (Nm 21.4-6) são apenas alguns dos eventos que podem ter passado por sua mente.
Sim, somos merecedores da ira e do furor de Deus. A brevidade de nossa vida e o cansaço e enfado a que parecemos destinados são consequência do nosso próprio pecado. Isso leva Moisés a pensar sobre o temor que é devido ao Senhor (v. 11). É então que ele começa a fazer sua súplica. No último trecho de sua oração, Moisés dirige vários pedidos a Deus:
“Ensina-nos a contar nossos dias para que alcancemos um coração sábio. Volta-te para nós, Senhor! Até quando? Tem compaixão dos teus servos. Sacia-nos de manhã com teu amor fiel, para que em todos os nossos dias nos regozijemos e nos alegremos. Alegra-nos pelos dias em que nos afligiste e pelos anos em que conhecemos a dor. Mostra teus feitos aos teus servos e tua glória aos filhos deles. Seja sobre nós a graça do Senhor, nosso Deus; e confirma sobre nós a obra das nossas mãos; sim, confirma a obra das nossas mãos” (Sl 90.12-17).
1. Ensina-nos a contar nossos dias (v. 12). Precisamos “entender como a vida é breve, para que vivamos com sabedoria” (v. 12, NVT). Para isso, carecemos da ajuda do Senhor. Aqui é importante observar que a eternidade de Deus “é a resposta, e não simplesmente a antítese, ao nosso desamparo e à brevidade da nossa vida”.[1] O Deus Eterno, refúgio da nossa geração, pode nos ensinar a viver sabiamente os dias limitados que temos nesta terra.
2. Volta-te para nós, Senhor! [...] Tem compaixão dos teus servos (v. 13). A reflexão de Moisés sobre a ira de Deus o leva a fazer este segundo pedido. A compaixão, o amor fiel (v. 14) e a graça do Senhor (v. 17) são agora invocados pelo salmista. Quantas vezes antes Moisés já recorreu à misericórdia e compaixão do Senhor para deter a sua ira – e Deus o ouviu! (Veja, p. ex., Êx 32.11-14; Nm 14.11-20.)
Nós, que temos a revelação completa de Deus no Antigo e Novo Testamentos, sabemos algo precioso: a ira de Deus contra o pecado foi plenamente satisfeita em Cristo. “Porque também Cristo morreu uma única vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus” (1Pe 3.18).
As más notícias são estas: como pecadores, “éramos por natureza filhos da ira” de Deus (Ef 2.3), merecedores do juízo e condenados à morte. As boas notícias do evangelho são: há salvação em Cristo. “Porque Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançarmos a salvação por nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu por nós” (1Ts 5.9,10). Por meio da fé exclusiva em Jesus, somos salvos da ira de Deus – recebendo, ao invés disso, sua maravilhosa graça.
Contudo, é preciso advertir: os que seguem rejeitando a Cristo ainda estão sob condenação e juízo. “Quem crê no Filho tem a vida eterna; quem, porém, mantém-se em desobediência ao Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus” (Jo 3.36).
3. Sacia-nos de manhã com teu amor fiel (v. 14). Ao fazer esse pedido, Moisés talvez não estivesse olhando para os pergaminhos, mas sim para o maná sobre o chão orvalhado. A cada manhã, Deus fazia chover o maná para saciar a fome do seu povo. Assim Moisés roga pelo amor fiel de Deus para satisfazer seu coração. Apenas dessa forma é possível que “em todos os nossos dias nos regozijemos e nos alegremos” (v. 14). No verso seguinte, ele também pede: Alegra-nos. A alegria que compensa os dias de aflição e os anos de dor (v. 15) só pode vir das mãos graciosas de Deus. Portanto, é nele que devemos buscá-la.
4. Mostra teus feitos aos teus servos e tua glória aos filhos deles (v. 16). Em que feitos do Senhor ele devia estar pensando? Moisés presenciou dezenas deles: a sarça ardente (Êx 3.2), as pragas no Egito (Êx 7 a 12), a abertura do mar Vermelho (Êx 14.21-31), a água jorrando da rocha (Êx 16.5,6)... E quanto à glória do Senhor? Será que ele relembrou a entrega dos mandamentos no monte Sinai, em que Deus se manifestou de maneira gloriosa a todo o povo (Êx 19.16-20; 20.18)? Ou talvez os reflexos da glória do Senhor em sua própria face, sempre que Moisés falava com Deus (Êx 34.29-35)? Ou ainda a nuvem sobre a tenda da revelação, enchendo o tabernáculo com a glória do Senhor (Êx 40.34,35)?
É interessante que ele está preocupado com a próxima geração: “aos filhos deles”. Sim, para que o Senhor seja o refúgio da próxima geração (v. 1), é preciso que os filhos conheçam seus feitos e sua glória! Aqui, é possível que Moisés tenha desenrolado o pergaminho de Deuteronômio, até chegar neste trecho: “Apenas ficai atentos. Ficai muito atentos para não vos esquecerdes das coisas que os vossos olhos viram, e para que elas não se apaguem do vosso coração durante todos os dias da vossa vida. Contai-as a vossos filhos e netos” (Dt 4.9). E um pouco mais adiante: “E estas palavras, que hoje te ordeno, estarão no teu coração; e as ensinarás a teus filhos e delas falarás sentado em casa e andando pelo caminho, ao deitar-te e ao levantar-te” (Dt 6.6,7).
Deus já mostrou seus feitos e sua glória em sua Palavra. Ela está à nossa disposição, para que o conheçamos. Aqui fica um convite para que folheemos continuamente os pergaminhos – digo, as Escrituras – e as ensinemos à próxima geração. Eis um uso sábio dos nossos dias.
5. Seja sobre nós a graça do Senhor, nosso Deus; e confirma sobre nós a obra das nossas mãos; sim, confirma a obra das nossas mãos (v. 17). Apenas se a graça do Senhor estiver sobre nós, o trabalho de nossas mãos terá algum valor permanente. O último pedido de Moisés é importante, pois ele o menciona duas vezes. A súplica é para que Deus torne “nossas labutas eficazes e duradouras – por mais breves que sejamos”.[2]
O contraste, que remata tudo, é entre aquilo que foi reconhecido como perecível nos vv. 3-12, e a glória permanente daquilo que Deus faz. Aqui temos uma herança para nossos filhos num mundo transitório; aqui temos deleite; aqui, também, temos a possibilidade de labor que “não é em vão” (cf. 1Co 15.58). Não somente a obra de Deus há de perdurar como também, com a bênção dele, “a obra das nossas mãos”.[3]
Moisés sabe que, no contexto da aliança de Deus com Israel, a bênção do Senhor estava diretamente relacionada à obediência aos seus mandamentos. A um povo que obedecesse à sua lei, Deus faria prosperar a “obra das suas mãos” (cf. Dt 14.29; 16.15; 24.19).[4]
O Novo Testamento declara a mesma coisa com estas palavras: “Ora, o mundo passa, bem como seus desejos; mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre” (1Jo 2.17). E qual é a vontade de Deus? “Que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo” (1Jo 3.23). “Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna” (1Jo 5.20).
Se estamos em Cristo, por meio da fé, temos a vida eterna. Temos também a possibilidade de, nos dias contados que viveremos sobre a terra, produzir obras que permaneçam. “Aqui está uma verdade memorável: Deus é capaz de trazer resultados eternos de nossos esforços limitados pelo tempo.”[5] Este é o anseio do salmista. Este é também o meu anseio.
Ah, Senhor! Não sei como será este novo ano, mas algumas coisas sei: o Senhor será sempre o meu refúgio – e dos meus filhos, netos, bisnetos...
Não sei quantos dias viverei, mas tu o sabes, pois já ordenaste e escreveste cada um deles (Sl 139.16).
Sei que o ano vai passar voando e acabar como um suspiro. Mas preciso aprender a contá-lo em dias para viver com sabedoria.
Sei que terei minha dose de cansaço, enfado, aflição e dor. Mas teu amor fiel é suficiente para me saciar a cada manhã; posso me regozijar e me alegrar em ti.
Por estar em Cristo, sei que tua graça já está sobre mim. Então, Senhor, confirma a obra das minhas mãos. Ajuda-me a trabalhar para o que é eterno. Ensina-me a fazer a tua vontade.
Que neste ano eu dependa de Cristo para viver uma vida que valha a pena. Um dia de cada vez.
Priscila Michel Porcher
Priscila é esposa do Marzo e mãe do João Victor e da Laila. Ela é membro da Primeira Igreja Batista em Indaiatuba, onde ama servir ao Senhor junto às mulheres e na turma de Juniores. É formada em Letras, trabalha com revisão de Português e escreveu Meninos como você, da Editora Peregrino.
Referências
[1] Kidner, Derek. Salmos 73–150: introdução e comentário. São Paulo: Edições Vida Nova e Editora Mundo Cristão, 1981, p. 351.
[2] Bíblia de Estudo NVI. São Paulo: Editora Vida, 2003. Nota de Salmo 90.17, p. 982.
[3] Kidner, Derek. Op. cit., p. 354.
[4] Bíblia de Estudo NAA. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018. Nota de Salmo 90.16-17, p. 999.
[5] Wilkin, Jen. Incomparável: 10 maneiras em que Deus é diferente de nós (e por que isso é algo bom). São José dos Campos, SP: Fiel, 2017, p. 94.
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