“As indulgências são redes com que agora se pescam os bens dos homens.” Essa é a tese 66, das 95 Teses de Lutero, em que ele se contrapôs aos desvios da Igreja Católica Romana.
Hoje celebramos o aniversário da Reforma Protestante. Em 31 de outubro de 1517, o Padre agostiniano, Martinho Lutero, fixou as 95 teses na porta da Catedral de Wittenberg, na Alemanha. Assim foi deflagrada o que ficou conhecida como a Reforma Protestante.
Ao contrário do que muitos pensam, essas 95 Teses não são a Declaração Doutrinária da Reforma. Elas não resumem as doutrinas centrais da fé protestante. As 95 Teses são o ponta pé inicial formal da Reforma. E o ponto central das Teses é o contraponto às indulgências.
As indulgências foram formalmente instituídas na Igreja Católica Romana em 1343, pelo Papa Clemente, através da bula “Unigenitus”.
De acordo a bula, Jesus Cristo, sendo Deus, se fez homem e, com seu sacrifício na cruz do Calvário, trouxe redenção à humanidade. Até aí, amém! É exatamente o que as Escrituras nos ensinam. O problema vem depois!
A bula diz como o perdão dado por Deus, por meio de Cristo, é aplicável a nós pecadores. A bula papal afirma que o sacrifício de Cristo criou um tesouro para a Igreja. Esse tesouro é o perdão que traz a reconciliação do homem com o Pai. Em decorrência disso, a Igreja deve administrar esse tesouro. Como ela o faz? Veja:
“Tal tesouro não está escondido numa toalha, nem enterrado num campo, mas confiou-o aos fieis para ser administrado fielmente por meio do bem-aventurado Pedro, portador das chaves do céu, e de seus sucessores como vigários na terra, para causas convenientes e razoáveis, quer para remissão total quer para remissão parcial do castigo devido a pecados temporais [ou de castigo temporal devido aos pecados], quer em geral quer em particular — como eles entenderem que seja útil diante de Deus — e para ser aplicado misericordiosamente aqueles que são verdadeiros penitentes e confessantes.”[1]
Como esse perdão deveria ser administrado pela Igreja? Os fiéis deveriam confessar seus pecados em Igrejas indicadas pelo clero, e os sacerdotes iriam dizer qual seria a penitência que eles deveriam pagar para se valer daquele tesouro de perdão que Cristo conquistou para a Igreja.
É curioso que no séc. XV e XVI essa prática se tornou economicamente interessante para a Igreja, por ocasião da Construção da Basílica de São Pedro, em Roma. Na época de Lutero, o dominicano Joao Tetzel encabeçava o comercio das Indulgências com esse intuito. Eles chegavam até mesmo a dizer que “ao tilintar das moedas no fundo das urnas das coletas, as almas eram salvas do purgatório!”.
A doutrina das indulgências encontrou ampla aceitação porque o entendimento católico era que, embora Deus conceda sua graça, cabe a cada um tomar posse dela, esforçar-se para melhorar essa graça e merecê-la cada vez mais.
Então, foi nesse contexto que Martinho Lutero se insurgiu para reformar a Igreja. Nas 95 teses encontramos Lutero afirmando o seguinte:
27. Os que afirmam que uma alma voa diretamente para fora (do purgatório) quando uma moeda soa na caixa das coletas, estão pregando uma invenção humana (hominem praedicant).
28. É certo que quando uma moeda soa, cresce a ganância e a avareza; mas a intercessão (suffragium) da Igreja está unicamente na vontade de Deus.
32. Aqueles que se julgam seguros da salvação em razão de suas cartas de perdão serão condenados para sempre juntamente com seus mestres.
33. Devemos guardar-nos particularmente daqueles que afirmam que esses perdões do papa são o dom inestimável de Deus pelo qual o homem é reconciliado com Deus.
36. Qualquer cristão que está verdadeiramente contrito tem remissão plenária tanto da pena como da culpa, que são suas dívidas, mesmo sem uma carta de perdão.
37. Qualquer cristão verdadeiro, vivo ou morto, participa de todos os benefícios de Cristo e da Igreja, que são dons de Deus, mesmo sem cartas de perdão.
51. Deve ensinar-se aos cristãos que o papa; como é de seu dever; desejaria dar os seus próprios bens aos pobres homens de quem certos vendedores de perdões extorquem o dinheiro; que para este fim ele venderia; se fosse possível; a basílica de São Pedro.
56. Os tesouros da Igreja; de onde o papa tira as indulgências; não estão suficientemente esclarecidos nem conhecidos entre o povo de Cristo.
66. Os tesouros das indulgências são redes com que agora se pescam os bens dos homens.
76. Dizemos ao contrário, que os perdões papais não podem tirar o menor dos pecados veniais no que tange à culpa.
84. Que misericórdia de Deus e do papa é essa de conceder a uma pessoa ímpia e hostil a certeza, por pagamento de dinheiro, de uma alma pia em amizade com Deus, enquanto não resgata por amor espontâneo uma alma que é pia e amada, estando ela em necessidade?
86. As riquezas do papa hoje em dia excedem muito às dos mais ricos Crassos; não pode ele então construir uma basílica de São Pedro com seu próprio dinheiro, em vez de fazê-lo com o dinheiro dos fiéis?
Perceba que padre Martinho Lutero, percebendo o quanto a prática das Indulgências estava distante das Escrituras protestou veementemente contra tal ensino da Igreja.
Toda a Bíblia é contrária ao ensino das indulgências, mas Lutero se ancorou mais em Romanos e Gálatas. Sim, Lutero percebeu que a mensagem central e poderosa da carta de Paulo aos Gálatas é que somente pela fé em Cristo temos a justificação. “O Justo viverá pela fé” (Gl 3.11). No prefácio do comentário aos gálatas, Lutero afirma: “A única doutrina que tenho supremamente no coração é a da fé em Cristo, de quem, por meio de quem e para quem todo o meu pensamento teológico flui para frente e para trás, noite e dia”.[2]
Lutero entendeu acertadamente que a doutrina da salvação por méritos, e sua consequente culminância nas penitências, ferem a doutrina central da justificação pela graça, mediante a fé em Cristo somente. Vejamos um trecho de seu escrito intitulado “Da liberdade do Cristão”:
“Como é que a fé sozinha pode tornar alguém piedoso e, sem todas as obras, conceder uma riqueza tão exuberante, uma vez que nas Escrituras são prescritas tantas leis, mandamentos, obras e ritos? Aqui é preciso ter em mente e não esquecer jamais que somente a fé, sem todas as obras, torna [o homem] piedoso, livre e o salva, como depois vamos ouvir mais, e é preciso saber [também] que as Sagradas Escrituras podem ser divididas em duas palavras que são: mandamentos ou leis de Deus, e promessas ou palavras afirmativas. Os mandamentos nos ensinam e prescrevem todo tipo de boas obras, mas isso não é suficiente para que também aconteçam efetivamente. Eles orientam, mas não ajudam; ensinam o que se deve fazer, mas não dão a força para isso. Consequentemente, eles só foram ordenados para que o homem veja neles a sua incapacidade de fazer o bem e aprenda a desesperançar-se consigo mesmo. Por isso, eles também são chamados de “antigo testamento”, e pertencem todos ao Antigo Testamento. Como o mandamento “Não abrigarás maus desejos” [Não cobiçarás] comprova, todos somos pecadores e ninguém é capaz de viver sem ter maus desejos, faça o que fizer; dessa maneira [o homem] aprende a desesperar-se consigo mesmo e a procurar ajuda noutro lugar, a fim de livrar-se dos maus desejos e cumprir assim o mandamento por meio de outro, já que ele não consegue por si só; da mesma maneira, todos os outros mandamentos também são impossíveis [de cumprir] por nós mesmos. Quando pelos mandamentos o homem aprende e reconhece a sua impotência, de maneira que fica amedrontado, perguntando-se como satisfazer o mandamento, uma vez que é preciso cumpri-lo ou ser condenado, ele acaba se sentindo humilhado e aniquilado aos seus próprios olhos, não acha nada em seu interior que possa justificá-lo. Então vem a outra palavra, a afirmação e promessa divina, que diz: ‘Se desejas cumprir todos os mandamentos, livrar-te da cobiça e do pecado tal como os mandamentos obrigam e exigem, então crê em Cristo, em quem te prometo toda graça, justiça, paz e liberdade; se crês, já as tens, se não crês, nada tens. Pois o que te é impossível com todas as obras dos mandamentos, que são muitas, mas nada valem, te será fácil e rápido por meio da fé. Pois coloquei na fé todas as coisas, de modo que quem a tem, tudo tem e será salvo, e quem não a tem, nada terá’. Desse modo, as promessas de Deus concedem o que os mandamentos exigem, e realizam o que eles ordenam, a fim de que tudo pertença a Deus, mandamento e cumprimento. Só ele ordena e só ele também cumpre.” [3]
Depois de 500 anos da Reforma, precisamos nos perguntar se a doutrina central das Escrituras, a respeito da justificação pela graça, mediante a fé em Cristo somente, não precisa ser novamente reafirmada pelas Igrejas herdeiras da Reforma. Ao olhar para um grande número de igrejas evangélicas em nossos dias, respondo tristemente que “sim”. E não acredito em outra forma de voltarmos à Reforma se não pelo método da Reforma: a proclamação fiel do Cristo morto e ressurreto, por meio da pregação expositiva de livros das Escrituras. Sola Scriptura!
pr. Nelson Galvão
Referências
[1]A bula “ Unigenitus” de Clemente VI, 1343. Corpus Iuris Canonici (Friedberg), 11.1304. Kidd, Documents of the Continental Reformation, N.° 1
[2] Nichols, Stephen. Além das 95 teses: A vida, o pensamento e o legado de Martinho Lutero. Editora FIEL. Edição do Kindle
[3]Lutero, Martinho. Martinho Lutero (Locais do Kindle 2414-2417). Vida Nova. Edição do Kindle.
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